A Peninsula

Sunday, August 28, 2011

CORRENDO CONTRA O RELOGIO

O grande dia chegou.
Árvores, pedras, matinhos estavam lotados de espectadores. Torcidas organizadas, faixas estendidas ao longo do caminho.
Os competidores, devidamente posicionados, aguardavam o tiro de largada. Na raia 1, a Lebre; na 2, a Tartaruga; 3 o Gambá e 4, o Relógio. Relógio antigo, daqueles de corda, que trepida a cada passo.
Na hora certa – não poderiam atrasar, após semanas de negociação, conseguiram que a Terra aceitasse ficar parada por algum tempo, mas não por muito. Vá que ela andasse mais de um lado que de outro e favorecesse um dos competidores? - POW!
A Lebre e o Gambá tomaram a dianteira. Passados os primeiros metros, percebendo que ficaria em desvantagem, o Gambá acionou sua arma nada secreta. Num único jato, neutralizou a competidora e parte da platéia, que se jogou no Rio. Claro que o Rio não gostou. Irritado, se retirou para tomar banho.
Lebre nocauteada, Gambá desclassificado, cadê o teste anti-doping?, continuavam no páreo a Tartaruga e o Relógio.
Quinze minutos, trinta, uma hora. Onde estão? A Terra dava sinais de querer voltar a seu ritmo normal.
A direção da prova decide procurá-los. Encontram os dois no maior papo, caminhando lado a lado, como velhos companheiros.
- Que houve?, perguntou o diretor à Tartaruga.
- É a arte da guerra, meu amigo. Se você não pode vencer o inimigo, alie-se a ele.

Sunday, April 25, 2010

O ANIVERSÁRIO DE MENTIRINHA DO MEU PAI

Como muitos filhos de imigrantes das primeiras décadas do século passado, meu pai foi registrado depois de seu nascimento. Exatamente 1 ano e meio após.
Meus avós paternos vieram da Polônia antes da Segunda Guerra, fugindo assim do extermínio nazista. Vô Henrique Goldberg (nascido Hirsch Gilbert) chegou primeiro e mandou buscar a Vó Raquel (originalmente Rifka), como era costume à época.
Sem falar uma palavra em português, instalaram-se no Rio Grande do Sul, em Pelotas. Depois, mudaram para Rio Grande, 56km mais ao Sul.
Alfaiate e costureira, construíram sua vida - e prepararam a dos filhos Abrahão, Isaac, Cecília, Rosa e Jaime - costurando.
Até entenderem as leis e a língua brasileiras, passou-se um bom tempo. Meu pai e seu irmão mais velho são dessa fase. Nascido em Pelotas em 25 de outubro, apenas num 25 de abril Dr. Isaac foi registrado.
Nossa família sempre gostou de aniversários, o que não implica necessariamente em festa. Talvez a possibilidade de não ter sobrevivido, como a maioria da família que não escapou às câmaras de gás, faça mais um ano vivido tão importante.
Lembro das nossas festas de aniversário, minhas e dos meus irmãos. Até minha boneca Wandeca ganhou festa de 1 aninho, com bolo igual ao meu, feito na mesma confeiteira. Da festa que fiz para meu pai quando mocinha da sociedade da nossa pequena cidade (porte médio para o RS, como gosto de dizer), com garçom em casa e todos os luxos da época. Minha festa de 15 anos num clube, primeira vez que vi um DJ.
Em abril eu, meus irmãos e minha mãe - que não gosta muito de celebrar o próprio, mas esse ano não nos escapa - nos lembramos que é aniversário do pai. Sempre o parabenizamos. E ele sempre se faz de surpreso!

Os presentes são outra marca dessa celebração entre nós. Quando criança, meu pai recebia os convidados na porta. Quem viesse de mãos vazias não entrava. Meus irmãos tiveram lições com os seus, arquitetados por meu pai e com a minha participação. A guitarra do Gui, o som do Dani.
O texto abaixo foi inspirado em minha experiência como tia.

JAVALI DE ANIVERSÁRIO

- Eu quero comer javali.
Roberto não parava de pensar na resposta que ouvira de seu filho, quando perguntou o que ele queria de aniversário.
- Javali, javali. De onde o Pedrinho tirou essa idéia?
Roberto passou dois dias quebrando a cabeça e então, concluiu: ah, só pode ser isso. Ele andou vendo Asterix. Esse menino tem o mesmo gosto do pai, pensou orgulhoso.
Convocou a família para organizar uma grande festa gaulesa para o menino. Do enfeite do bolo às bandeirolas, tudo teria inspiração em Asterix e sua turma.

Chegou o dia. Roberto parecia mais ansioso que o filho.
- Será que ele vai gostar?
Pedrinho voltou de um passeio organizado por seu pai para que estivesse fora, enquanto arrumavam a casa. Olhou os enfeites, acho divertido, abriu os presentes, brincou com os colegas, apagou a velinha em formato de menir.
Observava seu pai brincando com seus amigos e decidiu lhe dar mais um pouco de tempo.
Olhou o relógio, já era hora de alguém tomar uma atitude. Puxou o pai para o canto e falou:
- Pai, você já brincou o suficiente? É que tá ficando tarde e eu ainda tô esperando o meu presente.
Sem entender direito, Roberto quis levar Pedrinha para a festa, ía colocar "Asterix contra os Romanos" no vídeo, mas o menino insistiu:
- Pai, seu aniversário tá perto. Eu faço uma festa prá você e chamo os meus amigos. Eu também acho os seus muito chatos, não dá prá brincar com eles. Mas quando a gente vai sair prá comer javali?

Saturday, May 10, 2008

LIÇÕES DO LIXO

Desde que nascemos, consumimos.
Consumimos leite, da mãe, da vaca, de soja, em pó, em queijo...
Consumimos roupas , móveis, objetos, afetos, atenções. E aprendemos a pedir.
Depois que o comércio, a indústria e a publicidade descobriram o adolescente, e mais recentemente as crianças, como mercado, aprende-se a pedir cada vez mais cedo.
Com o desenvolvimento da tecnologia, coisas cada vez mais sofisticadas e efêmeras.
O próximo avanço sempre estará presente no próximo lançamento. E com eles, metais pesados que a natureza ainda não aprendeu a lidar. Os homens, menos ainda.
O que pedimos e nos dão – ou damos -, sai de algum lugar. Tem um percurso de nascimento – seja uma pessoa, uma idéia, um produto, uma verdura -, crescimento, maturação, envelhecimento e morte.
Entender que quase tudo pode ser reciclado, é o primeiro passo. “Mas a reciclagem não dá conta de todo o problema, A redução do consumo e do desperdício é essencial”, palavras de Rita Mendonça, no livro “Como cuidar do seu ambiente”.
Quanto mais queremos e consumimos, mais a Terra se desgasta. Independente de teorias que mostram este planeta como um ser auto-regulador, nosso ritmo de extração é tão predatório, que periga a Mãe Terra cansar desses filhos e resolver se auto-regular sem nós.

7. MERGULHO OU VÔO! Reflexões Sobre a Comunicação

No MSN:
Clarisse diz:oi tens uns minutinhos?
Joao diz:yes.
Clarisse diz:tô começando a feitura do texto.
A carpintaria, como se diz no teatro, mas fico um pouco confusa com o foco.
Ler teu texto sobre a descoberta da saudade me trouxe algumas questões tb.
Ali tens bastante informação, sem ser demais
E não perdes o foco, q são as descobertas do Felipe.
Eu tenho mto material e ainda estou um pouco confusa com o foco, pois talvez sejam dois.
Bem geminiana!
Joao diz:vai falando, falando e você acaba descobrindo.
Clarisse diz:a primeira idéia era falar sobre o time de futebol mais antigo do Brasil, passou para ser entender como o futebol, estrangeiro, se tornou a cara do Brasil.
Aí cheguei no movimento antropófago e a vontade de relacionar os dois.
Joao diz: quando estou com muita coisa o que eu faço é o seguinte:
Faço um título que resuma bem o espírito do texto.
E depois faço um olho, que introduz o leitor no texto, que também tem que ser um resumo do que eu quero dizer de essencial com o texto.
Aí começo o texto propriamente dito sem perder de vista o título e o olho.
Pense em um foco só.
E depois o texto vai pedindo (ou não) as outras coisas.

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Ao instrumental teórico e prático recebido durante a Pós Graduação em Jornalismo Literário, somo os conselhos de Ítalo Calvino, em suas seis propostas para o milênio que estamos vivendo. Servem tanto para o escrever, quanto para nossas relações em época de agitação. E todas o são, em algum ponto.
Leveza. “A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”.
Rapidez. “A narrativa é um cavalo: um meio de transporte cujo tipo de andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado, embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental”.
Exatidão. “Para mim, quer dizer três coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação”.
Visibilidade. “... diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transformação fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento”.
Multiplicidade. “Mesmo que a ciência tivesse reconhecido oficialmente o princípio de que o observador intervém para modificar de alguma forma o fenômeno observado, (Gadda) sabia que ‘conhecer é inserir algo no real; é, portanto, deformar o real”.
A sexta proposta, Consistência, Calvino morreu sem escrever, deixando apenas o título. Como se nos dissesse: agora é com vocês, escrevam!
Nova etapa, novos caminhos a desbravar. Encantamentos e dores a perceber no mundo e descobrir como lhes dar voz.
Mergulho e Vôo!O guia? Pode ser o fantasminha amarelo de Pedrinho. A realidade também deixa marcas por onde passa.

6. MERGULHO OU VÔO? - Reflexões Sobre a Comunicação

Mais um sábado.
Dessa vez no bairro do Brás. Oficina de redação com vendedores e voluntários da Ocas, entidade que trabalha com moradores em situação de rua.
A pauta é uma academia de boxe embaixo do viaduto do Bixiga. Sérgio, um dos vendedores, subira no ringue com uma lutadora e, no primeiro soquinho, fora à lona.
Improvisamos um exercício de tela mental, método desenvolvido pelo prof. Edvaldo Pereira Lima.
- Vamos fazer um exercício sobre a luta. As lutas do dia a dia, as lutas de cada um. Fechem os olhos, soltem os ombros, relaxem o pescoço, sacudam os braços. Olha a respiração.
- Agora imaginem uma tela branca em frente aos olhos de vocês, mas sem abrir. Só imaginem.
- O que vocês vêem?
- Agora essa imagem vai sumindo, sumindo, até desaparecer.
- Aos poucos, abram os olhos. Agora escrevam o que vocês viram, mas sem parar. Não importa que errem, não parem de escrever. Nem voltem para corrigir.
- Podem começar.
Histórias de luta, todas únicas, brotam dos mais distantes cantos do país.

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Pesquisa realizada com portadores de deficiência visual, que ganharam a visão após cirurgia, demonstra que se aprende a enxergar, desenvolve-se. Algumas pessoas que passam a ver pela primeira vez, só distinguem sombras e sentem vertigem, pois os contornos se descobre através de exercício.
O mesmo podemos dizer do ato de escrever, seja para um periódico, seja para si mesmo. Exercício constante, quase um treino para libertar a percepção do mundo que está a nossa volta. Aprender a enxergar.
A experiência de conhecer o Jornalismo Literário abriu dois caminhos. E uma dificuldade. Os caminhos são o de mergulhar em algo, uma pessoa, um assunto. E o tirar a cabeça de volta, para distanciar-se e ver o que ficou.
A dificuldade é selecionar entre tudo o que se vê.
Mergulho ou Vôo? Esse é o grande desafio.
Falar sobre a realidade, escrever a respeito, depende em primeiro lugar de conseguir enxergá-la. Depois, de se permitir deixar levar por ela e deixá-la mostrar o que não se previra.
Mas não pode ficar só nisso. Conhecimento não partilhado não serve para nada. Precisa de maturidade, entrega, vontade de conhecer. E de mostrar ao outro. Um encontro, mesmo que permeado por páginas de papel ou pela tela de um computador.
Paramos de dialogar, como fazê-lo agora? Como reatar os fios de nossa expressão no mundo? E como saber se o que queremos dizer merece ser ouvido?
Os Sete Pilares do Jornalismo Literário são um guia fundamental: imersão no tema; humanização do (os) personagem (ns), responsabilidade, exatidão de informações, criatividade, estilo e simbolismo.
“A produção de textos narrativos de qualidade, centrados na vida real, envolve dois momentos distintos. O primeiro momento é aquele em que o autor realiza um mergulho destemido na experiência de interação com o cenário de ações, ambientes e personagens sobre o qual escolhe reportar. (...) O segundo ocorre quando o autor afasta-se dali, da intensidade interativa imediata, para permitir que a psique encontre o sentido pleno da experiência que viveu, assim como da experiência vivida pelos personagens de sua narrativa do real. (...) O propósito de uma boa matéria de Jornalismo Literário, e mais ainda, de Jornalismo Literário Avançado, deve ser o de buscar compreender o universo escolhido para abordagem. Significa integrar informações, encontrar associações entre elementos do mundo observado, entender o melhor possível o padrão de forças que conformaram a manifestação da realidade tal qual o repórter encontrou”, afirma o Prof. Dr. Edvaldo Pereira Lima5, coordenador da Pós Graduação em Jornalismo Literário.
São as escolhas. Podemos mostrar o mundo por seus números ou por suas histórias. Essa nova retomada do Jornalismo Literário no espaço jornalístico e editorial brasileiro, denuncia uma vontade de redescobrir quem é o outro, de suavizar as falas, mesmo as mais difíceis. Abrir-se e dar o melhor de si. Mergulhar para ganhar impulso e lançar Vôo!

5. MERGULHO E VÔO - SENSAÇÃO DE ABISMO - Reflexões Sobre a Comunicação

Vir do extremo sul do Brasil para as salas de aula da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é, sem dúvida, uma revolução interna de proporções inimagináveis.
Saí das duas horas e meia de banca de seleção com uma quase certeza, e uma certeza absoluta.
A quase era que havia sido aprovada. A total era que, se fosse verdade, faria aulas com aquele professor que me havia feito as perguntas mais interessantes, mais instigantes.
Fui procurar seu nome. Ainda não sabia do inevitável da Sincronicidade, ou dela me esquecera, depois das aulas de Psicologia. Mas estava lá, datilografado. Laymert Garcia dos Santos.
Não acredito, é ele!
Descobrira Laymert ao encontrar o texto básico para meu projeto de tese. Trabalhando como psicóloga de presídio, o “Discurso da Servidão Voluntária”, de Etienne de la Boétie foi como um sopro de ar novo... ou um soco no estômago! Considerado o primeiro hino à Liberdade já escrito, - e também o pioneiro a falar sobre a importância da opinião pública -, o texto data de aproximadamente 1570.
Na minha limitada definição, eu o apresento assim: que alguém queira mandar, se entende. Mas por que tantos aceitam obedecer?
Laymert faz a tradução e apresentação do texto.
As previsões se realizam e cumpro minha promessa por três anos seguidos. A cada novo curso, minha cabeça se enche com mais e mais questões novas, como se estivesse desbravando um mundo escondido.

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As aulas de Laymert Garcia dos Santos na Pós Graduação da UNICAMP são inesperadas. Os títulos pouco dizem, o conteúdo segue roteiro muito próprio.
No ano de 1989, a turma de Pós Graduação estuda a Guerra de Canudos. Ou melhor, três maneiras como falaram sobre ela: através das matérias jornalísticas da época, literatura inspirada na guerra e Os Sertões, de Euclides da Cunha.
No fundo, o conteúdo é: o que a gente percebe do que vive? E como diz o que percebe?
Isso é o que fazemos o tempo todo, todos os dias. Seleções! Muitas vezes doutrinadas, condicionadas. E quebrar referenciais é cair num mundo desconhecido. Como Dorothy, em O Mágico de Oz.
Uma Sensação de Abismo. Como se não coubéssemos em nós, fôssemos sair pela boca.
“Dizer é momento. Momento em que se quer o que se pode, e já se pode o que se quer. (...) Dizer é difícil, extremamente difícil. (...) Séculos e séculos de servidão formaram, transformaram, refinaram as forças da morte em vida. (...) É a ‘guerra dos órgãos´. Insurreição generalizada, mas sempre local. Descontrole”, diz Laymert Garcia dos Santos. E acrescenta: “Dizer é dicção. Dicção cujo tempo é sempre presente, sempre dizendo . (...) As bocas fazem circular a linguagem triunfante da ordem. Como captar essa circulação? Dito de outro modo: como ouvi-la?”

Saturday, March 29, 2008

4. MERGULHO E VÔO - LIVRE ARBÍTRIO - Reflexões Sobre a Comunicação Março/2007

Sábado à tarde.
Um grupo heterogêneo de pessoas se reúne na Casa das Rosas, na Av. Paulista.
Em comum entre aquelas 13 pessoas, o desejo de escrever uma peça de teatro. É aula de Dramaturgia.
Sentados em círculo, lêem a peça O Mata-burro. Segue-se a análise da seqüência das ações, da força dramática, das intenções, dos personagens.
- Que interessante. Como será que o Fabio Torres teve essa idéia?, pergunta José, 51 anos, o mais velho e animado da turma.
- Lendo jornal, responde a dramaturga Paula Autran, professora do curso.
- Como?, pergunta Nadya, tentando pela segunda vez concluir o curso. Free-lancer em produção de TV e eventos, vai até onde o trabalho permite.
- É, no jornal. Ele leu que numa cidade do norte estavam matando os burros porque não tinham mais utilidade e o número era muito grande. Era uma notinha pequena, mas lhe chamou a atenção. O resto, é claro, ele criou.
- Trouxeram o texto de vocês?
Depois do intervalo, vamos às leituras.

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Anotações sobre o texto A Literatura: O Texto e seu Intérprete, de Jean Starobinski.
“A escolha de um objeto de estudo: não é inocente; supõe uma interpretação prévia; não se trata de puro dado, mas de um fragmento do universo que se delimita; a linguagem que usamos é a linguagem em que iremos interpretá-la.
Nossa atenção se divide em duas direções distintas: o objeto a ser explorado e os meios de exploração que estão sempre em inter-relação. Nós somos a única fonte dessa dupla escolha”.
“Quanto ao objeto: deve ter garantida sua máxima autonomia e independência; devemos apreendê-lo não segundo nossos desejos, mas como ele realmente é. Se o objeto é mal definido, o que dele se afirma será despido de pertinência, não será decisivo”.

Livre expressão pressupõe Livre Arbítrio. O poder e a responsabilidade de fazer escolhas. Mas temos mais regras a respeitar, compromissos a honrar. As leis do mercado se impõem.
Desde o tempo dos escribas, indivíduos registram histórias, leis, costumes de sua comunidade. Hoje esse papel cabe, em boa parte, aos jornalistas, que vivem sob o jugo do lead e de um editor, que vive sob o jugo do diretor, que... Como uma “Ciranda” em que no lugar do amor esteja como se quer que o outro veja o mundo.
Nos jornais, lemos informações desencarnadas, na maioria das vezes. Podemos ler, reler, mas não vemos de quem se fala. Que sujeito é esse? Ele existe ou é apenas um fato? Preso ao que, quem, como, quando, onde, por quê, ao tempo e espaço curtos, pode o jornalista perceber além do que lhe exigem? E quando vê, como fala a respeito?

Tuesday, March 25, 2008

3. MERGULHO E VÔO - A LIBERDADE - Reflexões Sobre a Comunicação Março/2007

Liberdade

Meia noite de um verão quente.
Daniel, advogado e guitarrista da banda cover do U2, “Elevation Band”, está sentado à frente do computador. De bermuda, ventilador ligado, edita o vídeo de apresentação da banda.
Reduzira 4 horas para 24 minutos. A idéia é convidar para cair na estrada com eles, acompanhando os shows, montagens, viagens e... estradas.
A primeira versão tem 12 minutos. Só de árvores vistas da janela da van, mais de 1. Tempo suficiente pra quem estiver assistindo virar na primeira curva.
A seu lado, sua irmã dá palpites.
- O que vocês querem mostrar com esse trecho de estrada?
- A banda, que a gente já rodou bastante com o show.
- Olha, eu acho o seguinte. O cara não tem muito tempo, tem que ganhar de saída. E o melhor é criar um suspense. O que é mais importante? Ver que o público está curtindo, não?
- Sim.
- Eu faria assim: deixa a música de fundo e mescla as imagens de estrada com de platéia, mas bem mais curto. Não mostra vocês ainda, só o público. E no final desse trecho, coloca a última imagem, onde vocês aparecem junto com o público. A mesma imagem que está no início, mas mostrando que quem está empolgando a platéia são vocês. Aí já está a mensagem. O resto, são os detalhes do show, montagem, repertório. Mas o que vocês tinham pra dizer já está dito.
Muitas horas depois, com o dia amanhecendo, o vídeo fica pronto, com 5 minutos e 49 segundos. O trecho para “ganhar” tem 25 segundos.
- Satisfeito?
- Sim. Tudo o que a gente queria dizer está lá. Depois olha como ficou. http://www.youtube.com/watch?v=g7iEDeFGd1U.

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Assim como aprendemos a obedecer regras, descobrimos brechas de Liberdade, onde ninguém nos alcança – ou apenas quem convidamos. Muitos tocam, cantam, criam imagens gráficas, desenham. Outros escrevem, geralmente em segredo.]
O que é a Liberdade?
A primeira lembrança é a viagem, a não prisão. Entendemos melhor a Liberdade pensando em seus opostos, conseguimos defini-la pelo que ela não é.
Liberdade para se expressar implica em comunicação, troca, intercâmbio. Para isso, precisamos perceber o outro. A quem nos dirigimos? Com quem falamos? O que queremos falar?
Em 1936, Walter Benjamin3 escreve que “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente (...) É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. “Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes julgaríamos impossíveis”.
Judeu alemão, Benjamin se torna completamente cético, chegando ao suicídio em 1940, para não ser capturado pela Gestapo. Enquanto ainda aposta no ser humano, indica alguns caminhos.“A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.
Vivendo sob a onipresença da imagem, temos o olhar enquadrado externamente, como se usássemos viseiras. Por outro lado, o avanço das ciências da imagem democratiza a edição. Mais um espaço para nossa Liberdade.
Porém, o equipamento só funciona aliado à sensibilidade de quem o maneja.

Monday, March 24, 2008

2. MERGULHO E VÔO - O CORTE - Reflexões Sobre a Comunicação - Março/2007

O Corte

Início da tarde, numa sala de aula da série “especial” de escola pública, em Pelotas.
Por “especial” entenda-se crianças que, por algum motivo – seja déficit de aprendizagem, problemas de comportamento, ou qualquer outro – os professores não sabem como lidar. E não são poucas, no bairro mais pobre e violento da cidade, Bom Jesus.
Contratada como orientadora educacional, coube a mim substituir a professora que faltara. Turma inquieta, crianças em ebulição. Levantar a voz apenas irá deixá-las mais agitadas.
Passo os olhos pela sala. Trinta e quatro crianças de 8 a 12 anos sentadas em duplas nas carteiras de madeira.
Pelas janelas de madeira velha, vê-se após o pátio de terra batida as ruas sem calçamento, algumas árvores, as casas pequenas.Tentando descobrir como agir, meu olhar se perde pelos becos tortuosos. Até que algo acontece.
- Todo mundo dormindo, digo, fechando as janelas.
- Como?, perguntam quase em coro.
- Todo mundo dormindo, repito.
Cada uma no seu tempo, as crianças sentam, deitam a cabeça sobre os braços cruzados em cima da carteira. Muitas espiam, fingem obedecer à estranha ordem. As mais irrequietas continuam falando, soltando piadinhas.
- É noite e a fadinha veio visitar vocês. Mas ela só visita quem está dormindo.
Uma a uma, vão se calando. Em cada uma, um cafuné. As que ainda resistem, ao ver o carinho, entram na dança. Ou melhor, no clima.
E o inesperado acontece. Todas estão em silêncio, curtindo a fadinha que só existe em sua imaginação e à qual empresto minha mão.
A brincadeira segue após um breve tempo de calmaria.
- Está começando a amanhecer!
Aos poucos, abro frestas nas janelas. Um galo canta na sala de aula. Risos.
- Hora de acordar, aviso, e a turma se espreguiça.
Que fazer agora? Lavar os dentes? Lavar o rosto?
- Fazer xixi, diz um brincalhão. Rio junto com eles.
“Tomam café”, alguns vão “para o chuveiro”, “fazem” os deveres de casa. Hora de almoçar e... ir para a escola.
- Onde vocês moram? O que tem no caminho da escola para cá?
Falam sobre as ruas, as casas, as pessoas, os animais, as árvores, as valetas, as poças, as cores, os cheiros, enfim, o universo onde vivem. Até que chegam na porta da escola.
- Agora vamos entrar na sala?
- Sim, dizem em coro.
- Então vamos começar a aula.

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A descoberta da conversa é uma das maiores aquisições da infância e pré-adolescência. Tudo é novo, mas bastante já se viveu. E se partilha com quem é amigo. Os conhecemos geralmente na escola. Também lá conhecemos outro tipo de disciplina, compromissos, regras.
Doutor em Educação, Samir Meserani observa que, “Tudo estaria tranqüilo dentro dos muros escolares, não fosse um fato digno de observação, sobretudo por ser paradoxal. Ainda que o sistema escolar seja estruturado para a reprodução, nele pulsam sonhos de criação”.
Aprendeu a ouvir. Mas ainda, maravilhosamente, tem muita coisa que quer contar.
Junto com as primeiras letras vêm os primeiros amores, o menino ou a menina da classe. E essas histórias se escrevem, em diários com cadeados. Aparecem as primeiras marcas. Até então tudo fora aprendizado. As primeiras noções de limites e adequações. O que se diz e o que se cala. As primeiras frases, as primeiras cicatrizes.
Os primeiros Cortes, externos ou internos. Como os ritos de passagem dos antigos.

Sunday, March 23, 2008

1. MERGULHO E VÔO - A FACA - Reflexões Sobre a Comunicação - Março/2007

A Faca

- O tantata amaieio! O tantata amaieio! Tenho medo do tantata amaieio!, diz Pedrinho, correndo entre os pais, tios e avós em sua casa.
- Socoio, socoio, o tantata amaieio!
Com 2 anos e 10 meses, Pedrinho quer alguém para fugir com ele. Uma tia resolve vir em seu auxílio, depois do pai traduzir: era o fantasma amarelo. Ninguém sabe de onde surgiu, nem o que ele faz. Mas Pedrinho quer correr dele, em torno da casa rodeada pelo jardim.
- Vamos pocuiá o tantata amaieio, diz Pedrinho, segurando em sua mão.
Após 2 voltas, a tia, com seus 45 anos, não agüenta o pique do menino e senta. Ele segura seu rosto com as duas mãozinhas e diz:
- Vamos, o tantata amaieio tá cegando.
- Pedrinho, deixa eu te explicar: o fantasma amarelo é invisível...
- Se ele é amarelo, como pode ser invisível?, implica o pai de Pedrinho.
- Ô, seu chato, não enche. Então, Pedrinho, o fantasma amarelo é invisível, a gente não consegue ver. Mas quando passa, ele deixa um sinal. Tá vendo essa faixa amarela no calção do Pedrinho? Foi o fantasma amarelo. Tá vendo esse tracinho amarelo no meu biquini? Foi o fantasma amarelo. Mas a gente não consegue vê-lo.
- Ah! Mas eu queio achá o tantata amaieio. Vamos, tia, vamos.
Impossível resistir àquele menino sorridente, alegre e brincalhão, apaixonado por caminhão de bombeiros.
- Tá bom, Pedrinho. Então vamos achar onde o fantasma passou. Mas vamos devagar.
- No vestido da Vovó Vany, no boné do Vovô Isaac, na blusa da Tia Merinha, no chinelo do Tio Gui.
Passando para a frente da casa, mais sinais do fantasma. Num vasinho, na rede onde sua mãe descansa. Na piscina nos fundos da casa, seus dois primos lhe acenam.
- Ei, vocês vilam o tantata amaieio?, pergunta o detetive mirim.
- Não, responde Rafael.
- Mas ele passou por aí, diz a tia. Olha a fitinha do Bonfim no pulso do Gabriel. O guarda-sol, a espreguiçadeira, olha o focinho da foquinha - a bóia.
Gabriel e Rafael não entendem e a tia explica.
- É Pedrinho, a gente não viu. Ele esteve por aqui. Só que ele já foi embora!
- Vamos pocuiá o tantata amaieio?, repete sem parar, puxando sua tia.
No jardim, cercado por tela para defender das cachorras, a tia mostra:
- Pedrinho, olha aquela florzinha. O fantasma passou por aqui.
- Que linda!, diz o menino.
- Tantata amaieio, apalece, fala, esquecendo o medo.
Pegando a mão da tia, recomeça o circuito.
À noite, a tia está cansada e feliz. Cansada de tentar acompanhar o pique daquele foguetinho humano. Feliz com o seu comentário:
- Vó, a tia Isse é uma menina!
Desde então, o “tantata amaieio” visita a tia Isse nos livros, nas ruas, nos sonhos.

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Quando nascemos, não distinguimos nada fora de nós. Não precisamos – e ainda não sabemos -, falar sobre o exterior, pois ele não existe. Tudo é nós!
Nosso primeiro contato com o mundo é com os olhos de quem nos alimenta. Seja o seio da mãe, seja quem segura a mamadeira. Numa relação amorosa, a mãe fala conosco enquanto nos nutre. Aprendemos sobre as palavras, o diverso, o espelho, olhando em seus olhos.
Para o criador da Epistemologia Genética, Jean Piaget, auto-definido como “antigo-futuro-filósofo que se transformou em psicólogo e investigador da gênese do conhecimento”, “o ‘egocentrismo’ na linguagem infantil implica a ausência da necessidade, por parte da criança, de explicar aquilo que diz, por ter certeza de estar sendo compreendida. (...) implica a noção de centração e descentração, isto é, a capacidade da criança de considerar a realidade externa e os objetos como diferentes de si mesma e de um ponto de vista diverso do seu.
Conclui que a construção do mundo objetivo e a elaboração do raciocínio lógico consistem na redução gradual do egocentrismo, em favor de uma socialização progressiva do pensamento”. Primeiro, aprendemos que existe o mundo. Depois, a falar sobre ele. Descobrimos em relação, mas ainda não é um diálogo. Apresentamos o nosso mundo e nos encantamos com o que nos mostram dentro dele. Aprendemos que existe o espaço que somos nós, e os que são os outros.
Podemos não saber como segurá-la mas, das mais variadas maneiras, começamos a usar a Faca e recortar nosso contorno. Como nas roupas das bonequinhas de papelão da infância.