A Peninsula

Monday, March 24, 2008

2. MERGULHO E VÔO - O CORTE - Reflexões Sobre a Comunicação - Março/2007

O Corte

Início da tarde, numa sala de aula da série “especial” de escola pública, em Pelotas.
Por “especial” entenda-se crianças que, por algum motivo – seja déficit de aprendizagem, problemas de comportamento, ou qualquer outro – os professores não sabem como lidar. E não são poucas, no bairro mais pobre e violento da cidade, Bom Jesus.
Contratada como orientadora educacional, coube a mim substituir a professora que faltara. Turma inquieta, crianças em ebulição. Levantar a voz apenas irá deixá-las mais agitadas.
Passo os olhos pela sala. Trinta e quatro crianças de 8 a 12 anos sentadas em duplas nas carteiras de madeira.
Pelas janelas de madeira velha, vê-se após o pátio de terra batida as ruas sem calçamento, algumas árvores, as casas pequenas.Tentando descobrir como agir, meu olhar se perde pelos becos tortuosos. Até que algo acontece.
- Todo mundo dormindo, digo, fechando as janelas.
- Como?, perguntam quase em coro.
- Todo mundo dormindo, repito.
Cada uma no seu tempo, as crianças sentam, deitam a cabeça sobre os braços cruzados em cima da carteira. Muitas espiam, fingem obedecer à estranha ordem. As mais irrequietas continuam falando, soltando piadinhas.
- É noite e a fadinha veio visitar vocês. Mas ela só visita quem está dormindo.
Uma a uma, vão se calando. Em cada uma, um cafuné. As que ainda resistem, ao ver o carinho, entram na dança. Ou melhor, no clima.
E o inesperado acontece. Todas estão em silêncio, curtindo a fadinha que só existe em sua imaginação e à qual empresto minha mão.
A brincadeira segue após um breve tempo de calmaria.
- Está começando a amanhecer!
Aos poucos, abro frestas nas janelas. Um galo canta na sala de aula. Risos.
- Hora de acordar, aviso, e a turma se espreguiça.
Que fazer agora? Lavar os dentes? Lavar o rosto?
- Fazer xixi, diz um brincalhão. Rio junto com eles.
“Tomam café”, alguns vão “para o chuveiro”, “fazem” os deveres de casa. Hora de almoçar e... ir para a escola.
- Onde vocês moram? O que tem no caminho da escola para cá?
Falam sobre as ruas, as casas, as pessoas, os animais, as árvores, as valetas, as poças, as cores, os cheiros, enfim, o universo onde vivem. Até que chegam na porta da escola.
- Agora vamos entrar na sala?
- Sim, dizem em coro.
- Então vamos começar a aula.

*******

A descoberta da conversa é uma das maiores aquisições da infância e pré-adolescência. Tudo é novo, mas bastante já se viveu. E se partilha com quem é amigo. Os conhecemos geralmente na escola. Também lá conhecemos outro tipo de disciplina, compromissos, regras.
Doutor em Educação, Samir Meserani observa que, “Tudo estaria tranqüilo dentro dos muros escolares, não fosse um fato digno de observação, sobretudo por ser paradoxal. Ainda que o sistema escolar seja estruturado para a reprodução, nele pulsam sonhos de criação”.
Aprendeu a ouvir. Mas ainda, maravilhosamente, tem muita coisa que quer contar.
Junto com as primeiras letras vêm os primeiros amores, o menino ou a menina da classe. E essas histórias se escrevem, em diários com cadeados. Aparecem as primeiras marcas. Até então tudo fora aprendizado. As primeiras noções de limites e adequações. O que se diz e o que se cala. As primeiras frases, as primeiras cicatrizes.
Os primeiros Cortes, externos ou internos. Como os ritos de passagem dos antigos.

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