A Peninsula

Saturday, March 29, 2008

4. MERGULHO E VÔO - LIVRE ARBÍTRIO - Reflexões Sobre a Comunicação Março/2007

Sábado à tarde.
Um grupo heterogêneo de pessoas se reúne na Casa das Rosas, na Av. Paulista.
Em comum entre aquelas 13 pessoas, o desejo de escrever uma peça de teatro. É aula de Dramaturgia.
Sentados em círculo, lêem a peça O Mata-burro. Segue-se a análise da seqüência das ações, da força dramática, das intenções, dos personagens.
- Que interessante. Como será que o Fabio Torres teve essa idéia?, pergunta José, 51 anos, o mais velho e animado da turma.
- Lendo jornal, responde a dramaturga Paula Autran, professora do curso.
- Como?, pergunta Nadya, tentando pela segunda vez concluir o curso. Free-lancer em produção de TV e eventos, vai até onde o trabalho permite.
- É, no jornal. Ele leu que numa cidade do norte estavam matando os burros porque não tinham mais utilidade e o número era muito grande. Era uma notinha pequena, mas lhe chamou a atenção. O resto, é claro, ele criou.
- Trouxeram o texto de vocês?
Depois do intervalo, vamos às leituras.

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Anotações sobre o texto A Literatura: O Texto e seu Intérprete, de Jean Starobinski.
“A escolha de um objeto de estudo: não é inocente; supõe uma interpretação prévia; não se trata de puro dado, mas de um fragmento do universo que se delimita; a linguagem que usamos é a linguagem em que iremos interpretá-la.
Nossa atenção se divide em duas direções distintas: o objeto a ser explorado e os meios de exploração que estão sempre em inter-relação. Nós somos a única fonte dessa dupla escolha”.
“Quanto ao objeto: deve ter garantida sua máxima autonomia e independência; devemos apreendê-lo não segundo nossos desejos, mas como ele realmente é. Se o objeto é mal definido, o que dele se afirma será despido de pertinência, não será decisivo”.

Livre expressão pressupõe Livre Arbítrio. O poder e a responsabilidade de fazer escolhas. Mas temos mais regras a respeitar, compromissos a honrar. As leis do mercado se impõem.
Desde o tempo dos escribas, indivíduos registram histórias, leis, costumes de sua comunidade. Hoje esse papel cabe, em boa parte, aos jornalistas, que vivem sob o jugo do lead e de um editor, que vive sob o jugo do diretor, que... Como uma “Ciranda” em que no lugar do amor esteja como se quer que o outro veja o mundo.
Nos jornais, lemos informações desencarnadas, na maioria das vezes. Podemos ler, reler, mas não vemos de quem se fala. Que sujeito é esse? Ele existe ou é apenas um fato? Preso ao que, quem, como, quando, onde, por quê, ao tempo e espaço curtos, pode o jornalista perceber além do que lhe exigem? E quando vê, como fala a respeito?

Tuesday, March 25, 2008

3. MERGULHO E VÔO - A LIBERDADE - Reflexões Sobre a Comunicação Março/2007

Liberdade

Meia noite de um verão quente.
Daniel, advogado e guitarrista da banda cover do U2, “Elevation Band”, está sentado à frente do computador. De bermuda, ventilador ligado, edita o vídeo de apresentação da banda.
Reduzira 4 horas para 24 minutos. A idéia é convidar para cair na estrada com eles, acompanhando os shows, montagens, viagens e... estradas.
A primeira versão tem 12 minutos. Só de árvores vistas da janela da van, mais de 1. Tempo suficiente pra quem estiver assistindo virar na primeira curva.
A seu lado, sua irmã dá palpites.
- O que vocês querem mostrar com esse trecho de estrada?
- A banda, que a gente já rodou bastante com o show.
- Olha, eu acho o seguinte. O cara não tem muito tempo, tem que ganhar de saída. E o melhor é criar um suspense. O que é mais importante? Ver que o público está curtindo, não?
- Sim.
- Eu faria assim: deixa a música de fundo e mescla as imagens de estrada com de platéia, mas bem mais curto. Não mostra vocês ainda, só o público. E no final desse trecho, coloca a última imagem, onde vocês aparecem junto com o público. A mesma imagem que está no início, mas mostrando que quem está empolgando a platéia são vocês. Aí já está a mensagem. O resto, são os detalhes do show, montagem, repertório. Mas o que vocês tinham pra dizer já está dito.
Muitas horas depois, com o dia amanhecendo, o vídeo fica pronto, com 5 minutos e 49 segundos. O trecho para “ganhar” tem 25 segundos.
- Satisfeito?
- Sim. Tudo o que a gente queria dizer está lá. Depois olha como ficou. http://www.youtube.com/watch?v=g7iEDeFGd1U.

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Assim como aprendemos a obedecer regras, descobrimos brechas de Liberdade, onde ninguém nos alcança – ou apenas quem convidamos. Muitos tocam, cantam, criam imagens gráficas, desenham. Outros escrevem, geralmente em segredo.]
O que é a Liberdade?
A primeira lembrança é a viagem, a não prisão. Entendemos melhor a Liberdade pensando em seus opostos, conseguimos defini-la pelo que ela não é.
Liberdade para se expressar implica em comunicação, troca, intercâmbio. Para isso, precisamos perceber o outro. A quem nos dirigimos? Com quem falamos? O que queremos falar?
Em 1936, Walter Benjamin3 escreve que “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente (...) É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. “Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes julgaríamos impossíveis”.
Judeu alemão, Benjamin se torna completamente cético, chegando ao suicídio em 1940, para não ser capturado pela Gestapo. Enquanto ainda aposta no ser humano, indica alguns caminhos.“A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.
Vivendo sob a onipresença da imagem, temos o olhar enquadrado externamente, como se usássemos viseiras. Por outro lado, o avanço das ciências da imagem democratiza a edição. Mais um espaço para nossa Liberdade.
Porém, o equipamento só funciona aliado à sensibilidade de quem o maneja.

Monday, March 24, 2008

2. MERGULHO E VÔO - O CORTE - Reflexões Sobre a Comunicação - Março/2007

O Corte

Início da tarde, numa sala de aula da série “especial” de escola pública, em Pelotas.
Por “especial” entenda-se crianças que, por algum motivo – seja déficit de aprendizagem, problemas de comportamento, ou qualquer outro – os professores não sabem como lidar. E não são poucas, no bairro mais pobre e violento da cidade, Bom Jesus.
Contratada como orientadora educacional, coube a mim substituir a professora que faltara. Turma inquieta, crianças em ebulição. Levantar a voz apenas irá deixá-las mais agitadas.
Passo os olhos pela sala. Trinta e quatro crianças de 8 a 12 anos sentadas em duplas nas carteiras de madeira.
Pelas janelas de madeira velha, vê-se após o pátio de terra batida as ruas sem calçamento, algumas árvores, as casas pequenas.Tentando descobrir como agir, meu olhar se perde pelos becos tortuosos. Até que algo acontece.
- Todo mundo dormindo, digo, fechando as janelas.
- Como?, perguntam quase em coro.
- Todo mundo dormindo, repito.
Cada uma no seu tempo, as crianças sentam, deitam a cabeça sobre os braços cruzados em cima da carteira. Muitas espiam, fingem obedecer à estranha ordem. As mais irrequietas continuam falando, soltando piadinhas.
- É noite e a fadinha veio visitar vocês. Mas ela só visita quem está dormindo.
Uma a uma, vão se calando. Em cada uma, um cafuné. As que ainda resistem, ao ver o carinho, entram na dança. Ou melhor, no clima.
E o inesperado acontece. Todas estão em silêncio, curtindo a fadinha que só existe em sua imaginação e à qual empresto minha mão.
A brincadeira segue após um breve tempo de calmaria.
- Está começando a amanhecer!
Aos poucos, abro frestas nas janelas. Um galo canta na sala de aula. Risos.
- Hora de acordar, aviso, e a turma se espreguiça.
Que fazer agora? Lavar os dentes? Lavar o rosto?
- Fazer xixi, diz um brincalhão. Rio junto com eles.
“Tomam café”, alguns vão “para o chuveiro”, “fazem” os deveres de casa. Hora de almoçar e... ir para a escola.
- Onde vocês moram? O que tem no caminho da escola para cá?
Falam sobre as ruas, as casas, as pessoas, os animais, as árvores, as valetas, as poças, as cores, os cheiros, enfim, o universo onde vivem. Até que chegam na porta da escola.
- Agora vamos entrar na sala?
- Sim, dizem em coro.
- Então vamos começar a aula.

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A descoberta da conversa é uma das maiores aquisições da infância e pré-adolescência. Tudo é novo, mas bastante já se viveu. E se partilha com quem é amigo. Os conhecemos geralmente na escola. Também lá conhecemos outro tipo de disciplina, compromissos, regras.
Doutor em Educação, Samir Meserani observa que, “Tudo estaria tranqüilo dentro dos muros escolares, não fosse um fato digno de observação, sobretudo por ser paradoxal. Ainda que o sistema escolar seja estruturado para a reprodução, nele pulsam sonhos de criação”.
Aprendeu a ouvir. Mas ainda, maravilhosamente, tem muita coisa que quer contar.
Junto com as primeiras letras vêm os primeiros amores, o menino ou a menina da classe. E essas histórias se escrevem, em diários com cadeados. Aparecem as primeiras marcas. Até então tudo fora aprendizado. As primeiras noções de limites e adequações. O que se diz e o que se cala. As primeiras frases, as primeiras cicatrizes.
Os primeiros Cortes, externos ou internos. Como os ritos de passagem dos antigos.

Sunday, March 23, 2008

1. MERGULHO E VÔO - A FACA - Reflexões Sobre a Comunicação - Março/2007

A Faca

- O tantata amaieio! O tantata amaieio! Tenho medo do tantata amaieio!, diz Pedrinho, correndo entre os pais, tios e avós em sua casa.
- Socoio, socoio, o tantata amaieio!
Com 2 anos e 10 meses, Pedrinho quer alguém para fugir com ele. Uma tia resolve vir em seu auxílio, depois do pai traduzir: era o fantasma amarelo. Ninguém sabe de onde surgiu, nem o que ele faz. Mas Pedrinho quer correr dele, em torno da casa rodeada pelo jardim.
- Vamos pocuiá o tantata amaieio, diz Pedrinho, segurando em sua mão.
Após 2 voltas, a tia, com seus 45 anos, não agüenta o pique do menino e senta. Ele segura seu rosto com as duas mãozinhas e diz:
- Vamos, o tantata amaieio tá cegando.
- Pedrinho, deixa eu te explicar: o fantasma amarelo é invisível...
- Se ele é amarelo, como pode ser invisível?, implica o pai de Pedrinho.
- Ô, seu chato, não enche. Então, Pedrinho, o fantasma amarelo é invisível, a gente não consegue ver. Mas quando passa, ele deixa um sinal. Tá vendo essa faixa amarela no calção do Pedrinho? Foi o fantasma amarelo. Tá vendo esse tracinho amarelo no meu biquini? Foi o fantasma amarelo. Mas a gente não consegue vê-lo.
- Ah! Mas eu queio achá o tantata amaieio. Vamos, tia, vamos.
Impossível resistir àquele menino sorridente, alegre e brincalhão, apaixonado por caminhão de bombeiros.
- Tá bom, Pedrinho. Então vamos achar onde o fantasma passou. Mas vamos devagar.
- No vestido da Vovó Vany, no boné do Vovô Isaac, na blusa da Tia Merinha, no chinelo do Tio Gui.
Passando para a frente da casa, mais sinais do fantasma. Num vasinho, na rede onde sua mãe descansa. Na piscina nos fundos da casa, seus dois primos lhe acenam.
- Ei, vocês vilam o tantata amaieio?, pergunta o detetive mirim.
- Não, responde Rafael.
- Mas ele passou por aí, diz a tia. Olha a fitinha do Bonfim no pulso do Gabriel. O guarda-sol, a espreguiçadeira, olha o focinho da foquinha - a bóia.
Gabriel e Rafael não entendem e a tia explica.
- É Pedrinho, a gente não viu. Ele esteve por aqui. Só que ele já foi embora!
- Vamos pocuiá o tantata amaieio?, repete sem parar, puxando sua tia.
No jardim, cercado por tela para defender das cachorras, a tia mostra:
- Pedrinho, olha aquela florzinha. O fantasma passou por aqui.
- Que linda!, diz o menino.
- Tantata amaieio, apalece, fala, esquecendo o medo.
Pegando a mão da tia, recomeça o circuito.
À noite, a tia está cansada e feliz. Cansada de tentar acompanhar o pique daquele foguetinho humano. Feliz com o seu comentário:
- Vó, a tia Isse é uma menina!
Desde então, o “tantata amaieio” visita a tia Isse nos livros, nas ruas, nos sonhos.

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Quando nascemos, não distinguimos nada fora de nós. Não precisamos – e ainda não sabemos -, falar sobre o exterior, pois ele não existe. Tudo é nós!
Nosso primeiro contato com o mundo é com os olhos de quem nos alimenta. Seja o seio da mãe, seja quem segura a mamadeira. Numa relação amorosa, a mãe fala conosco enquanto nos nutre. Aprendemos sobre as palavras, o diverso, o espelho, olhando em seus olhos.
Para o criador da Epistemologia Genética, Jean Piaget, auto-definido como “antigo-futuro-filósofo que se transformou em psicólogo e investigador da gênese do conhecimento”, “o ‘egocentrismo’ na linguagem infantil implica a ausência da necessidade, por parte da criança, de explicar aquilo que diz, por ter certeza de estar sendo compreendida. (...) implica a noção de centração e descentração, isto é, a capacidade da criança de considerar a realidade externa e os objetos como diferentes de si mesma e de um ponto de vista diverso do seu.
Conclui que a construção do mundo objetivo e a elaboração do raciocínio lógico consistem na redução gradual do egocentrismo, em favor de uma socialização progressiva do pensamento”. Primeiro, aprendemos que existe o mundo. Depois, a falar sobre ele. Descobrimos em relação, mas ainda não é um diálogo. Apresentamos o nosso mundo e nos encantamos com o que nos mostram dentro dele. Aprendemos que existe o espaço que somos nós, e os que são os outros.
Podemos não saber como segurá-la mas, das mais variadas maneiras, começamos a usar a Faca e recortar nosso contorno. Como nas roupas das bonequinhas de papelão da infância.